26.4.12

Isolamento II

     Certo dia, já no fim da primavera, Augusto teve uma pequena enfermidade. Náusea e dores de cabeça, parecia que os montes ondulavam e o chão amolecia. Mas o maior sintoma de doença foi o gira-discos que parou de tocar. É que, para os ouvidos doentes, o som do violino no Capricho número 24 de Paganini tornara-se insuportavelmente estridente. "Esta zurraria parece uma serração de lenha", pensou ele, antes de o som cessar. E assim passaram dois dias de silêncio sepulcral. O estado letárgico de consciência débil que a febre trouxera tornavam os movimentos pesados e lentos. Já nem vagar havia para cozer o ovo do pequeno-almoço!
     A situação tornava-se insustentável. Augusto precisava de alguém que viesse cozinhar, guardar e tratar da casa. Alguém que não vivesse muito longe e que tivesse um mínimo de instrução. Bem, à falta de melhor, talvez tivesse anotado o número do Café Central na agenda de pele. E assim era.

- Café Central, bons dias!
- Bom dia, estou a telefonar-lhe para...
- A broa de milho esgotou, não aceitamos encomendas porque o fermento só chega amanhã!
- Posso falar?
- Diga...
- Eu vivo no caminho das Fragas da Saudade, perto do Souto da Mula...
- Na antiga casa do Doutor Venâncio?
- Precisamente. Sou o novo inquilino.
- Novo quê?
- Morador. O meu nome é Augusto.
- Prazer! Sou o Luciano...
- Gostava de saber se não conhece ninguém disposto a dar alguma ajuda a cuidar da propriedade, pagarei bem...
- Olhe, tenho aqui um rapaz que é boa rês. Quer falar com ele?
- Pois sim...
- Atão aguarde, já o passo.
-...
- Touxim?
- Hum... Bom dia.
- O senhor arranja trabalho? Olhe que sem mulheire, não há quem me queira!
- O que está para aí a dizer?
- Nada... Quanto é que paga?
- Temos de negociar. Pode estar cá às seis da tarde?
- Pode.
- Boa tarde então. Não se atrase.

     A notícia ecoou pelos quatro cantos da aldeia. A dona Ermelinda ficou orgulhosa com possibilidade de o seu filho ter um emprego. Até a rádio local, Mula FM, já propagandeava, com pompa e circunstância, a notícia do dia: o novo posto de trabalho na localidade de Freixial. Mas o senhor Augusto permanecia impávido e sereno na sua doença, prostrado numa cadeira de baloiço.
     Só às seis e cinco é que se fez ouvir o sino do portão. Confrangido com o silêncio dominante, o rapaz avançou lentamente. Augusto fitava-o com desdém enquanto atravessava o terreiro: de estatura alta, o rapaz tinha a pele branca e tez vermelha no cimo das bochechas; o cabelo era negro e os olhos, escuros como breu e bastante juntos, tal como as sobrancelhas, que se uniam. Calçava chuteiras Kipsta e vestia-se com jeans rotos, uma t-shirt dos Tokyo Hotel e um lenço preto e branco que lembrava aquele palestiniano, cujo nome não me lembro... Pois sim, o Yasser Arafat.

- Boa tarde, venho em boa hora?
- Sim... Está disposto a ajudar-me enquanto estiver doente?
- Pode ser. Quanto me está disposto a pagar?
- Trezentos líquidos, já sem descontos. Ou prefere recibo verde?
- O que é isso? Sim, trezentos soa bem.
- Perfeito. Então pode começar por preparar uma canja. Vá à aldeia se precisar de comprar víveres. Já agora, como se chama?
- Anselmo. Na aldeia sou conhecido por Pantagruel. Pois sim, vou já lá. Entretanto quer que lhe faça um chá?
- Sim, hortelã. Pode por Rapsódia Húngara a tocar entretanto. Sabe como se põe um disco...
- Pois claro, era eu que mixava o som na aparelhagem das festas da aldeia!

     Augusto deliciava-se com a delicadeza do gosto do chá e as nuances do som de Brahms enquanto Pantagruel descia à aldeia. Chegado ao Café Central, fizeram-lhe as honras da casa com uma pratada de tremoços. O senhor Luciano bombardeou-o com perguntas de cultura geral, tais como quem era o Augusto, que fazia ele na vida, se era casado, se era pirómano ou larilas, que queria ele da aldeia e da serra. Pantagruel não se descosia, não só por ignorância, mas também porque as músicas que ouvira enquanto trabalhava não lhe saíam da cabeça:

- Ó sô Luciano, ouvi umas cenas mesmo brutais! Tem aí computador com o iutube?
- Veja lá o que põe. Pancadaria herege e diabólica aqui não!
- Nada disso. Vou por aquilo que o Augusto ouviu lá em cima. Ele até me disse o que era, eram os três bês da música. Ahh, péra, não me lembro... Baque, Betôven e Brámes, ou lá o que era...
- Mete lá que é para a gente ver, disse o senhor Fausto, que entrava no café vindo da monda.

     Pelas colunas começou a soar a oitava sinfonia. A estupefacção foi geral:

- Ó filho, baixa aí o som das Tardes da Júlia, que isto é melhor que televisão! - disse o senhor Luciano. Pasmado, o Fausto exclamou:

- É incrível, parecem muitos ranchos a tocar ao mesmo tempo! O Betóve é um génio, tem de actuar cá no ano que vem!

     Pantagruel já ganhara o dia. Deslumbrara a aldeia com músicas até então desconhecidas. Porém, o tempo passara depressa e a noite caía. Augusto esperava-o no cimo da Serra, ansioso pelo fim do jejum.

- Tenho de subir, Luciano. E depressa. Sabes como é que faço canja? O que devo comprar?
- Epa, só tens de comprar frango ou galinha e umas massas. Cozes tudo e depois até podes temperar.
- Muito bem, compro então a carne e as massas - disse Pantagruel, temendo que a estreia culinária pudesse não correr de feição.

19.4.12

Isolamento I


CRIIIIIIIIIIIIIIIIICK


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CRIIIIIIIIIIIIIIIIIICK


tatatatatatatat …………………………………. WuiIuuuu 




………………………. Computer Connected ……………………



Password: ●●●●●●●●

 
**PLIM**

Ana do Ó diz:
Não acredito que te mudaste mesmo para o campo! A sério que não sou capaz de perceber porque haveria alguém de se mudar para o meio de nenhures. Pelo que me mostraste a casa nem sequer é perto da aldeia. E não há nada a que eu chame cidade num raio de 300km…
Augusto.Freitas diz:
Já te disse que preciso de sossego. Estava farto de viver aí. Demasiada gente. Demasiado barulho. Demasiada pressa. E depois aqui tenho net. Está bem que é mais primitiva que a roda, ligação telefónica, mas mantém-me ligado a tudo. Só não tenho a pressão de viver na cidade.
Ana do Ó diz:
Nem o contacto. Ou tencionas levar as pequenas campónias  da Merdaleja à ópera? É que, mesmo que quisesses e elas não ficassem a olhar para ti como suínos vias-te e desejavas-te para encontrar um teatro municipal, quanto mais uma ópera…
Augusto.Freitas diz:
Sabes bem raramente vou à ópera, prefiro o cinema. E não custa nada sacar os filmes que quero ver e vê-los na televisão. Vá, admite. Na verdade estás fula por nem a ti eu te convidar para vires passar um fim-de-semana. Mas já te disse, preciso da calma. E repito, não estamos isolados, podemos falar sempre que quisermos, aqui em cima tenho rede. E quero saber tudo o que se passar por aí…
Ana do Ó diz:
Muito engraçado… Mas agora tenho que ir, combinei com o Mário ir àquele restaurante novo, junto ao rio. Beijos
Augusto.Freitas diz:
Ok. Depois conta como foi. Hasta
Ana do Ó abandonou a conversação.    *Clique*
Augusto olhava para a paisagem enquanto fechava o chat. Através da janela da secretária via-se um estreito vale que um rio embelezava. Lá em baixo, junto às margens lânguidas, estava a pequena aldeia. Não teria mais de vinte habitantes e estava completamente isolada do frenesi da vida contemporânea.  Augusto gostava do campo que o rodeava, todos os dias observava as pessoas da aldeia nas suas vidas pacatas, conversando e trabalhando, mas não se identificava particularmente com elas. Ele gostava das comodidades das grandes metrópoles, do florescimento do acaso e da oferta de escolhas. Mas era também um homem recatado e, de um estranho modo, bucólico. Ultimamente a vida na grande cidade tornava-se insuportável, muito movimento, muita acção, demasiada conversa, demasiada impulsividade. Quando fugira do burburinho da cidade não tencionava desligar-se desse mundo, antes procurava uma nova forma de se relacionar com ele. Uma forma em que a cultura de uma grande metrópole estivesse pressente, nem no entanto ser forçado a agir e falar sem pensar. Felizmente a internet, mesmo uma fraca ligação telefónica, permitia isso mesmo. Proximidade apesar da distância física, o melhor de dois mundos.
Quando arranjara aquele chalé tivera o cuidado de escolher um que não ficasse demasiado próximo de nenhuma povoação, para não criar os maus hábitos da província, mas também que não fosse tão distante que se sentisse só no meio do campo. A localização daquele era perfeita! No cume do monte tinha uma vista soberba sobre as redondezas e a aldeia mais próxima encontrava-se longe o suficiente ara que as suas casas se misturassem com a paisagem. Os habitantes eram para ele como indígenas de um mundo esquecido, isolados na sua tacanhez. Não sentia qualquer afinidade com eles. Eram pessoas que não liam Keates nem ouviam Debussy, para eles o símbolo máximo da cultura eram os programas da tarde que passavam na televisão. Bergman não conheciam, teatro e revista era para eles uma e a mesma coisa, e achavam que ópera era o que berravam nos campos. Numa palavra: provincianos! A sua relação com eles resumia-se à observação dos seus hábitos, do cimo do monte, e as compras pontuais que tinha que fazer porque gostava de agricultura biológica.

das Séries


                Os conspiradores deste blog andam a pecar por falta de estímulo. O caro leitor terá que nos perdoar. Em nossa defesa argumentamos que por vezes se torna tão difícil encontrar temas para dissertar como é, outras vezes, difícil escolher de entre tantos. Seja como for considerámos a situação incomportável e decidimos tornarmo-nos activos.
                Como dissemos é difícil por vezes dissertar simplesmente sobre algo. E é já vontade antiga dos autores redigir uma saga à laia de história. No entanto pareceu-nos que começar com tal empreendimento sem treino seria a receita para a desgraça. Vamos portanto devagar.
                Propomos ao leitor um pequeno conto, em seis partes, em que cada um dos conspiradores participará com um máximo de 1000 palavras por intervenção e o limite máximo para uma continuação será de uma semana, ao estilo de qualquer série televisiva. Não haverá guião ou limites para a imaginação, apenas se exige continuidade e coerência com o que já foi escrito e limitaremos a criatividade a um tema geral.
                Desejamos que o leitor se divirta tanto quanto nós esperamos divertir-nos.

7.4.12

das Palavras


                As palavras são algo de traiçoeiro. Não que elas próprias congeminem dolos ou nos enganem com sentidos dúbios! As palavras são algo de traiçoeiro pela importância que lhes damos. Dependemos delas para nos expressarmos. Quem não diz que está cansado, ou que está dorido? Mas a verdade é que nem sempre as palavras nos ajudam.
                No nosso quotidiano as palavras são algo de útil. Com três nomes: Comida Prato Mesa, conseguíamos transmitir a ideia de que a comida foi servida. Felizmente, como todas as coisas úteis criadas pelo Homem, podemos embelezar o nosso discurso e dizer: A comida foi servida no prato de Limoges, na mesa da sala de Jantar. Há até quem, com alguma arte e engenho, consiga transmitir algo de extremamente valioso: pensamentos, mas não creio incluir-me nesse grupo. Apesar disto atrevo-me a dizer que há situações em que nenhuma palavra pois pode salvar. Expressar o desejo de beijar a nossa amada nunca será tão eficaz como fazê-lo. No entanto o poder das palavras é tal que muitos caem nessa tentação, criando assim a ideia de que as palavras podem substituir as acções e, pior!, que as palavras resolvem tudo.
                Não é verdade! Quando sentimos a dor em nós, e não me refiro exclusivamente à dor física, não é falando sobre ela que passa. Substituir por palavras algo que nos enche a alma de forma avassaladora apenas distrai e ajuda os outros a compadecer-se de nós. Mas como é possível arranjar palavras para confortar um pai que perdeu o filho? Como partilhar com outros o nosso amor por alguém? São estas as situações em que as palavras nada podem. Como posso eu sentir verdadeiramente se me distraio a descrevê-lo a todos os que me rodeiam? Como descrever algo de que fujo? É impossível. Diz-se que as palavras são vento. Mas o vendo, quando se espalha demasiado, perde a força e torna-se numa brisa suave. E como descrever uma tempestade recorrendo apenas à suave brisa que nos aquece as faces?
                As palavras nada podem contra a força imensa do que nos move, são pálidos quadros feitos para exibição num ambiente acomodado. No entanto muitos quadros há que conseguem pôr os nossos corações a palpitar e movem milhões. É esta a força das palavras, é nisto que são traiçoeiras. As palavras são traiçoeiras, revestem-se de uma importância que não têm e tentam tornar-se incontestáveis.
É perante isto que o silêncio ganha significado, pela assustadora presença do indiscritível.